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Há em nós certa proximidade com a crueldade. Que fascina ou repulsa. Que nos identifica com ovelhas ou lobos, vitimas ou seus carrascos, contudo, que não nos deixa indiferentes: seja, talvez pelo dualismo moral no qual a maioria das consciências estão situadas e limitadas, ou até mesmo, pelo desejo em superar essa dualidade.

A série Hannibal da NBC, muito embora cative os já admiradores da trajetória do serial Killer Dr. Hannibal Lecter, foge do já consagrado esteriótipo do psicopata dissimulado. Hannibal nos dá a impressão de ser aquele que em primeiro plano transita entre dois mundos: um mundo de perfeita ordem e harmonia, onde estão situadas sua erudição, capacidade de sedução, bom convívio social e fina empatia. Qualidades que o colocam acima de qualquer suspeita. Por outro lado, transita também por um mundo de caos, o plano no qual, identificado com o nada, assume ele mesmo a figura de um criador, de um deus, onde as regras morais vigentes, criadas por outro deus, perdem a validade.

Há desse modo um plano teológico impossível de ignorar. Hannibal, assim como Deus, se identifica com ele enquanto criador, e enquanto criador, nenhuma regra prévia ou moralidade lhe está sujeita. Contudo, não se trata de uma identificação gratuita: assim como todos os homens, ele vive num mundo de leis e moral criadas por outro deus, não oposto, mas igual a ele. Sua intensão portanto, é uma criação a partir do subterrâneo, uma subversão.

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Aspectos que são iluminados pelo andamento da série.

Will Graham, investigador especial do FBI, introvertido e dotado de uma imaginação fértil e calculista, possui uma característica peculiar que o torna indispensável em sua rotina investigativa: ao analisar os dados de um crime, se coloca mentalmente no lugar do criminoso a fim de determinar como se estabeleceu o método do assassinato. Esse tipo de comportamento o torna cada vez mais emocionalmente instável e sob supervisão de um psiquiatra. É quando aparece em cena o Dr. Hannibal Lecter, que identifica em Will um potencial psicopata.

A relação que se estabelece entre médico e paciente, nada mais indica, da parte de Hannibal, um caráter iniciático, o que significa, morrer para um mundo e nascer para outro. Plano bem característico das escolas de mistério. Esse tipo de postura irá guiar basicamente as duas primeiras temporadas da série, onde na primeira, o objetivo de Lecter é destruir as concepções tradicionais de moralidade de Will, incriminando-o por uma série de assassinatos que outrora investigava. Na segunda temporada, fazendo dele um aliado, buscar inocentá-lo de seus crimes. A ironia consiste em que “renascido” Will irá voltar-se contra seu criador, aliando-se a ele a fim de incriminá-lo.

Enquanto amoral, Hannibal parece ser de igual modo, bissexual. O desfecho da segunda temporada deixa elementos que indicam isso (como a última conversa entre Will e Hannibal, que parecia, de forma bem nítida uma briga de casal). Curioso como, pelo menos durante as duas primeiras temporadas Hannibal evita matar mulheres. A única em que assassina cruelmente, é a agente Beverly Katz por descobrir seu segredo, mas no geral, costuma esconder suas vítimas femininas, a fim de que sejam dadas como mortas e apenas em tempo oportuno revela-las vivas. Talvez uma referência a irmã, morta por canibalismo.

Para Hannibal, todo ato de criação é um ato de violência contra o que já está instituído. Sendo assim, não há regras prévias para o ato de criação, não há moralidade. Deus é violento enquanto cria, de igual maneira, o homem enquanto sua criatura. A moralidade portanto, enquanto instrumento de passividade (de paz entre os iguais) inibe o processo criador. Todo homem que não é um criador, um deus, é um animal, uma besta. Um porco em sua categoria. Conotação de certa forma aristotélica-nietzscheniana, deixando bem claro as posições de caça e caçador.

O poder sobre a carne é um tema central em toda a série, origem das cenas de violência extrema, canibalismo e tortura requintada. Hannibal é justamente sobre a relação do poder com os corpos, e como essa relação pode subverter nossos padrões tradicionais de moralidade, segundo determinadas necessidades, uma temática cara a Foucault por exemplo. É por isso que a série deixa bem explícita a possibilidade de todos os que possuem certa autoridade sobre o corpo de outro, tornarem-se psicopatas em potencial, tal como médicos, juristas, psicanalistas, policiais e etc.. E como toda relação social se estabelece minimamente com domínio de um corpo sobre outro, isso implica afirmar que todos somos psicopatas em potencial, reprimidos antes por uma moral. Que o estado original de cada homem é a violência e o caos, não o oposto.

 

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2 comentários sobre “Hannibal e o Poder Sobre a Carne

  1. Quando vc fala do poder sobre a carne, estas se referindo ao processo que Hannibal faz com suas vítimas, os pratos finos que faz com parte dos órgãos de quem ele matou?
    E outra coisa, a semelhança do agir de Hannibal para com deus, está nesse processo pelo qual ele se submete, o da ‘criação’ dos pratos, ou o da manipulação de seus pacientes para coagi-los a ser o que Hannibal espera que eles se tornem??

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    1. Não necessariamente. O poder sobre a carne é algo que vai muito além da simples manipulação física da vítima. Ele controla tudo e todos: seduz, manipula, controla.. Esse é o seu poder. Seu controle sobre o corpo se assemelha posição de demiurgo, presente no gnosticismo.

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